A escrita, a ortografia, os mitos e os concursos

Os concurseiros deveriam ter a consciência de que não é a escrita que determina a fala, mas exatamente o contrário: para tentar registrar a língua falada é que surgiu a escrita.

Em termos de língua existe um mundo fantasioso* onde impera o que chamamos de norma-padrão idealizada. Nesse mundo, a escrita é tomada como um bloco homogêneo, invariável, sempre imaginada como a escrita literária ou de gêneros textuais mais monitorados e mais valorizados socioculturalmente ou, melhor, mais valorizados por um segmento restrito da sociedade. Ou seja, nesse mundo fictício quem dita as regras do bem falar e o bem escrever são os "clássicos da literatura".

O concurseiro médio hoje, embora nunca tenha se debruçado sobre essas questões, tem a mentalidade impregnada por essa ideologia gramaticalista e, portanto, se acha no direito de respeitar as leis do tal mundo fantasioso. Acaba agindo muitas vezes com acirrada intolerância contra quem escreve/fala "fugindo à regra".

Tal intolerância encontra respaldo na maioria das gramáticas que assolam o mercado moderno. São verdadeiros "manuais da língua" que não admitem outro modelo de língua senão o dos “grandes escritores”. Mas é preciso sempre lembrar que os autores de compêndios gramaticais filiados à tradição consideram como “língua culta” apenas a língua escrita e, mais precisamente, a língua escrita pelos “bons autores”, escolhidos segundo critérios de gosto estético totalmente subjetivos.

Para visualizar esse tipo de comportamento, não precisamos chegar à universidade: basta ler grande parte dos comentários deste site, ou de qualquer outro portal da internet. Democratizamos, com a internet, o direito de nos expressar por escrito, mas ao mesmo tempo, começamos a investir cruelmente na correção dos nossos semelhantes usuários da língua. Todo mundo se acha imbuído do dever cívico de corrigir o próximo, e quanto mais tempo de escolaridade tiver esse próximo, mais severo será o nosso ataque.

Muitos concurseiros (pessoas como quaisquer outras da face da terra) - boa parte deles sequer teve contato na vida com os "clássicos" - acreditam que seus anos de escolaridade tradicional são o suficiente para demonstrar proficiência em seu próprio idioma (proficiência gramatical e normativa, entenda-se). Confiados nos exemplos de uso da língua que as gramáticas trazem, oriundos da maioria das obras desse gênero literário, acreditam que são capazes de corrigir a redação do outro com plena autoridade, ao ponto de ridicularizar qualquer deslize.

E aqui entra uma informação importante neste breve artigo: não estamos criticando a exigência das bancas examinadoras, quando pedem a escrita de uma prova discursiva dentro do padrão culto formal da língua. Para o bem da uniformidade da língua, trata-se de uma exigência importante, porque vivemos em sociedade, precisamos ter o suporte de uma variedade linguística socialmente aceita, até para termos acesso às oportunidades que o mercado de trabalho apresenta.

É PRECISO ASSIMILAR E UTILIZAR ESSE PADRÃO SOCIALMENTE ACEITÁVEL DO PORTUGUÊS, SIM! SÓ NÃO PRECISAMOS CONSERVAR ESSA CULTURA DO PRECONCEITO CONTRA TODA FORMA DE EXPRESSSÃO QUE A RIQUEZA DA NOSSA LÍNGUA PERMITE COEXISTIR!

Por outro lado, apesar de todos nós nos esforçarmos por aceitar essa ideia de um português padrão, não podemos deixar de lado as suas controvérsias. Os autores do gênero literário chamado gramática normativa assumem a variedade da escrita literária como a única digna de ser estudada, ensinada e praticada, e consideram isso tão natural que, em geral, nem se dão ao trabalho de defini-la como seu objeto de estudo. Fica evidente que para eles só essa variedade escrita mais conservadora merece o rótulo de “língua portuguesa”. O que vem estampado nesses compêndios vale, supostamente, em qualquer lugar do mundo, em qualquer momento histórico, em qualquer classe social, em qualquer faixa etária.

Com essa tendência, ficam de fora atitudes relevantes. Por exemplo, os autores de gramáticas prescritivas, incluindo as mais recentes, não fazem a distinção básica entre ortografia e fonética, isto é, entre as regras da escrita oficial da língua e os fenômenos da língua oral. Isso fica ainda mais claro quando eles incluem a ortografia no mesmo capítulo em que apresentam a fonética.

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Assim, seria fundamental que as professoras e os professores se conscientizassem de que saber ortografia não é saber a língua. São dois tipos diferentes de conhecimento, controlados, aliás, por partes diferentes do cérebro. Como vivemos numa cultura altamente grafocêntrica — centrada na escrita —, ignoramos o fato de que ¾ das línguas do mundo não têm forma escrita (só no Brasil são mais de 150). São as chamadas línguas ágrafas e elas são tão complexas (e às vezes até mais complexas morfossintaticamente) do que as línguas mais difundidas mundialmente.

Fica óbvio, então, que a ortografia não faz parte da língua. Saber ortografia é como tocar piano, dançar balé, atirar com arco e flecha, manejar um programa de computador — são atividades que exigem treinamento, prática constante, memorização consciente. Saber a língua é outra coisa. Afinal, milhões de pessoas nascem, crescem, vivem e morrem sem jamais aprender a ler/escrever sendo, no entanto, conhecedoras perfeitas da gramática de sua língua, capazes de distinguir com clareza uma construção agramatical de uma gramatical.

É comum os linguistas se referirem aos idiomas humanos como línguas naturais. Podemos então, em contraposição a isso, afirmar que a ortografia é artificial, depende da vontade dos homens e, principalmente, dos homens que legislam sobre ela. Com muita frequência, ela fica sujeita aos gostos pessoais ou às interpretações dos fenômenos linguísticos por parte dos filólogos que ajudam a estabelecê-la.

O mito de que a “escrita representa a fala” e, por conseguinte, “é preciso falar como se escreve” ainda constitui um dos principais entraves para uma pedagogia de língua materna no Brasil. Mesmo que a nossa ortografia esteja muito distante das irracionalidades evidentes da francesa e, sobretudo, da inglesa, uma análise mais minuciosa faz emergir uma série de inconsistências.

Por isso, no processo de alfabetização, o agente alfabetizador precisa ter plena consciência de que nem tudo o que se escreve se pronuncia, nem tudo o que se pronuncia se escreve, e que a ortografia é um conjunto de símbolos, em boa medida arbitrariamente escolhidos, empregados para escrever, os quais, como todo símbolo, exigem um conhecimento prévio para sua interpretação, uma iniciação, uma vez que seu significado não pode ser deduzido apenas de sua figura. Escrevemos com a mesma letra "O" uma série de sons: em avô temos um ["o" fechado]; em avó temos um ["o" aberto]; assim também acontece com o "O" das palaras "mágoa" e "cabo". Por isso, a ortografia nunca deve ser considerada como um “retrato fiel” da língua falada.

Também é preciso estar ciente de que não é a escrita que determina a fala, mas exatamente o contrário: para tentar registrar a língua falada é que surgiu a escrita. E não há nada na escrita que faça dela uma entidade supostamente mais importante e mais organizada do que a língua falada. Essa suposta importância é fruto exclusivo de fenômenos socioculturais e político-ideológicos relacionados à natureza grafocêntrica das sociedades ocidentais. A língua falada tem gramática, se estrutura segundo regras, é perfeitamente organizada.

Outra ideia sem fundamento — ou seja, um mito — é a de que uma ortografia “simplificada” facilitaria a aprendizagem da leitura e da escrita. Ora, se fosse assim, as línguas mais faladas e escritas internacionalmente — o francês e, ainda mais, o inglês —, com suas ortografias ilógicas e complicadas, jamais teriam alcançado a difusão que alcançaram. A realidade nos mostra que é preciso inverter esse mito: é a educação de qualidade que leva um povo a se apoderar de seu patrimônio letrado e a ser capaz de ler e de escrever bem, independentemente do tipo de sistema de escrita empregado.

Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha apresentam índices de alfabetização de 99% da população, apesar da ortografia caótica do inglês. A França exibe o mesmo índice, assim como o Canadá, país que tem no inglês e no francês suas línguas oficiais e de ensino. O Japão tem um índice de alfabetização que beira os 100% — no entanto, escrever em japonês é um aprendizado constante: um cidadão japonês letrado aprende em média um ideograma novo por dia; e a escrita japonesa se vale de nada menos do que três sistemas de escrita diferentes: os ideogramas de origem chinesa (kanji) e dois silabários (katakana e hiragana). A China também se destaca como um país onde 93.3% de seus 1,5 bilhão de habitantes são alfabetizados e dominam algo entre 3.000 e 4.000 ideogramas diferentes para poderem ler e escrever a contento.

Por outro lado, diversos países que têm o português como língua oficial e de ensino, isto é, uma língua com uma ortografia mais simples e mais regrada que a das línguas citadas acima, apresentam baixos índices de alfabetização: Angola (67,4%), Guiné-Bissau (44,8%), Moçambique (48%). No Timor-Leste, só metade da população é alfabetizada, sendo que no final do período colonial português, em 1975, o analfabetismo chegava aos 90%, mostrando bem a política colonial portuguesa que, ao contrário de outras potências imperiais, nunca se importou com a educação de seus súditos de além-mar.

A Guatemala, país onde a língua oficial é o espanhol — que tem um dos sistemas ortográficos mais próximos do “ideal” —, apenas 69,1% da população é alfabetizada (13 milhões de habitantes). Em contrapartida, Cuba, com população semelhante (11 milhões) ocupa o primeiro lugar na lista de todos os países do mundo em qualidade de educação, e seu modelo de alfabetização popular tem sido adotado por outros países latino-americanos. De acordo com os resultados obtidos nos testes de avaliação de estudantes latino-americanos, conduzidos pela Unesco, Cuba lidera, por ampla margem de diferença, nos resultados obtidos pelas 3as. e 4as. séries em matemática e compreensão de linguagem. Os índices mais baixos obtidos pelos estudantes cubanos superaram de longe os mais altos de outros países do continente, incluindo o Brasil.

Como se vê, é perfeitamente possível alfabetizar todo um povo, desde que haja investimentos consistentes em educação — se eles existirem, a ortografia pode ser de qualquer tipo.

 * Este artigo é uma edição interpretativa do artigo de Marcos Bagno intitulado "A escrita, a ortografia e seus mitos", disponível originalmente no link: http://e-proinfo.mec.gov.br/eproinfo/blog/preconceito/a-escrita-a-ortografia-e-seus-mitos.html

 Antes de escrever um comentário maldoso, sobre o modo como as pessoas escrevem, apontando os "erros de português" e querendo dar uma de "dono da gramática" leia também este artigo

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