A pedagogia concurseira e o cérebro humano II

Segunda parte dos comentários de dois especialistas sobre os ensinamentos propagados pelos cursinhos preparatórios e as bases científicas que regem o funcionamento do nosso cérebro.

* Então, o que vale não é apenas memorizar conhecimento, mas sim, experimentá-lo?

[De certa forma, sim]. Somente por meio da experiência concreta de estudar, focando nossa atenção e praticando de
forma repetida é que poderemos influir eficazmente no modo em que os conhecimentos adquiridos irão [transformando] e modelando o substrato neural de nossos pensamentos, de nossa memória e de nosso aprendizado.

Assim que o “problema” acerca de como aprende o cérebro não está reservado aos gurus da motivação, aos “expertos” em concursos públicos, aos educadores e aos cientistas; é um “problema” de todos e que tem por finalidade fazer surgir em todos nós o sentido de uma comprometida e iniludível responsabilidade pessoal por nosso próprio aprendizado.

Se o cérebro é uma “obra”, nós somos seu sujeito, autor e resultado ao mesmo tempo. Um tipo de compromisso que implica aceitar conscientemente o fato de que nosso papel no processo de aprendizagem é o de dar-se conta e reconhecer que embora seja com o cérebro, e só com ele, que aprendemos, nossa capacidade para aprender (e memorizar) não é somente um produto
da cognição e emoção que emergem de nosso cérebro, senão também de respostas que damos às exigências culturais e de nossas experiências pessoais e interpessoais.

Se temos potencial cerebral/neuronal para aprender habilidades novas e para melhorar as que já temos, então do que necessitamos para ampliarmos essa potencialidade? 

[Necessitamos] pensar claramente sobre nossa própria experiência (única e intransferível), que questionemos nossas suposições, que saibamos distinguir o que sabemos bem do que só cremos saber que seja certo e, o mais importante, que desafiemos a todo aquele que se dedique a predicar discursos supérfluos sobre o cérebro.

Em suma: há que decifrar-se, cultivar-se, palpar os próprios limites, questionar tudo e fazer da experiência vivida de estudar/aprender o que ninguém tenha feito antes.

Apostilas com conteúdos específicos para todos os concursos públicos:

Isso significa dizer que todos os produtos da indústria dos concursos que hoje estão disponíveis são supérfluos ou descartáveis?

[Não é isso. Por mais paradoxal que seja dizer o que se dirá agora, é preciso lembrar que não devemos] descartar tudo o que nos diz a indústria do “sucesso garantido”. Muitos livros, vídeos, palestras e conselhos dessa natureza nos alentam a assumir nossas responsabilidades, a ter disciplina, a estudar com regularidade e atenção, a enfrentar as dificuldades, a buscar sabedoria e felicidade, a confiar em nossas capacidades, a superar nossos momentos de desânimo e frustração, a ter fé, a acreditar que “tudo passa”...

Em geral, todos são bons conselhos, ainda que não sejam em nada distintos dos que recebemos de nossos pais e de nossos avós. E o melhor de tudo: não nos cobram por eles.

O verdadeiro problema é que toda essa prolífica fonte de mitos e distorcidas crenças normalmente vem intercalada com falsos matizes psicológicos, interpretações fantasiosas e com afirmações que contradizem frontalmente algumas evidências científicas atuais (aliás, na maioria das vezes, a ciência sugere detalhes mais básicos de nossa experiência ordinária
sumamente incômodos para a mente humana). Como consequência, [pode acontecer de] as pessoas que seguem ou adotam uma medida ineficaz podem estar perdendo a oportunidade de utilizar outro meio efetivo ou obter outro tipo de ajuda que lhes seja mais útil e necessária.

Sob essa perspectiva, podemos afirmar que a consciência crítica exerce um papel preponderante nesse processo, tanto do ponto de vista do sujeito que aprende (passivo), quanto daquele que ensina (ativo), por mais que este último esteja revestido de uma relativa autoridade?

[Sim, porque, de fato, não podemos negar a] questão da “falácia de autoridade”, quer dizer, de nossa tendência a aceitar qualquer coisa porque o disse determinada pessoa com certa fama e não pelas virtudes (científicas) ou defeitos próprios da
afirmação.

Enquanto esses gurus ou manipuladores da esperança buscam dizer à gente o “que pensar” e o “que fazer”, a divulgação da ciência, ao promover o pensamento racional, ensina precisamente o contrário, a duvidar, a pedir dados, a utilizar critérios de verdade fiáveis, pretende em todo caso ensinar a como pensar. Este, e somente este, “deveria ser o objetivo da educação” (J. Beattie).

[Pode-se afirmar claramente que, na] realidade, paira a impressão de que os gurus “de moda”, pelo menos em sua grande maioria, não são capazes de reconhecer uma história verdadeiramente científica, por mais que esta apareça nua em sua frente.

[O resultado disso é que] as pessoas que crêm equivocamente que os conselhos otimistas e pseudocientíficos, as receitas mágicas e as promessas de êxito divulgadas por algum “especialista no assunto” são um meio eficaz para superar as dificuldades podem estar investindo uma grande quantidade de tempo, dinheiro e recursos (cognitivos e emocionais) em uma atividade inútil. [Elas poderiam aproveitar] outros meios efetivos para aprender.

Há receitas, promessas e conselhos divertidos, atraentes e otimistas que servem para levantar o ânimo, motivar, alegrar o dia e dar certa segurança. Mas não [precisamos fazer tantas] concessões, [porque] estudar e aprender não guarda uma relação muito estrita com esse tipo de prática.

Além disso, se alguém se expressa com um tom de certeza absoluta ao falar destes temas (ensino, aprendizado, memorização, técnicas, métodos, “turbinagem”, “autoajuda cerebral”...), lhes estará dizendo algo basicamente incorreto, pois as provas de causas e efeitos neste âmbito são quase sempre débeis e circunstanciais, e as diferenças de personalidade de cada indivíduo podem não ter relação alguma com os problemas que afirmam “tratar”.

Nesse embate, qual a parte que está mais equivocada: a dos "gurus" ou as instituições de ensino?

[Acreditamos que as instituições de ensino. E digamos por que]: não nos surpreende que haja
empreendedores e gurus (indivíduos, em definitiva) que se dediquem a vender suas experiências, técnicas, métodos e ideias no mercado livre. Em certo sentido (ainda que estranho), respeitamos e admiramos sua tenacidade.

[Mas o que] de verdade nos tem assombrado é que as instituições de ensino, que (pelo menos em teoria) são depositárias de um conjunto muito distinto de responsabilidades, acolham e incentivem esses profissionais que enganam, confundem e “deslumbram” com explicações de pretendida cientificidade. [Isto ainda mais se agrava porque] estão fazendo tais coisas [em um campo como a educação, no qual o perigo é muito concreto, fomentando um tipo de prática empreendida por
indivíduos impelidos em todo momento pelo desejo de criar um mercado para si mesmos, em que eles são os “expertos” nessa classe de enfoque e nós os engambelados e os ignorantes.

Quais as suas palavras finais sobre este assunto?

[Para concluir, o que queremos dizer aos concurseiros e professores] é que, pelo menos diante das atuais limitações e carências da investigação neurobiológica, parece [muito] razoável evitar deixar-se seduzir pelas licenças poéticas ou pelo uso abusivo e charlatão de quimeras acerca do poder da mente, da capacidade do cérebro para aprender e memorizar, do controle motivacional, etc., sob pena de corrermos o risco de descaminhar-nos nos delírios de uma mente vadia ou de perder-nos em uma selva de falsas ideias.

Da mesma forma como a religião condena aos humanos a uma [menor idade] permanente, assim também muitos dos grandes mitos sobre “como aprende o cérebro” não somente podem fazer-nos perceber como irrefutavelmente reais as mais disparatadas e nauseabundas fábulas sobre nosso cérebro, senão que também podem levar-nos a tomar decisões
poucos acertadas em nossa vida cotidiana de estudantes.

É importante saber que já contamos com um cérebro/mente com todo o imprescindível para desenvolver nossa capacidade de aprender e memorizar o que necessitamos e, dessa forma, aprovarmos em qualquer concurso público. Só é necessário um pouco mais de atenção, de entrega pessoal e uma firme disposição para atuar livremente e fazer nosso próprio cérebro.

A primeira parte desta entrevista está neste link

* Entrevista literária e didática baseada no artigo "Concurso público e cérebro: pseudociência e (neuro) estafa", publicado em 2014 e disponível na internet.

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